Como a recente descoberta do primeiro clima árido no Brasil, em área que abrange municípios baianos, pode impactar o restante do país
Pela primeira vez, especialistas identificaram uma região de clima árido no Brasil, um dado surpreendente e alarmante que tem uma explicação clara: as mudanças climáticas causadas pelo homem.
O trecho de quase 6 mil km² fica no centro-norte da Bahia e abrange toda a área das cidades de Abaré, Chorrochó e Macururé, além de trechos de Curaçá, Juazeiro e Rodelas, municípios baianos que fazem fronteira com o sertão pernambucano.
📝 Contexto: A aridez é a falta crônica de umidade no clima, indicando um desequilíbrio constante entre a oferta e a demanda de água. Ela é permanente e, por isso, difere da seca, período temporário de condições anormalmente secas.
Além desse dado inédito, o estudo feito por pesquisadores do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) em parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) revelou também que o avanço do semiárido vem ocorrendo num nível acentuado pelo país.
Nos últimos 60 anos, a cada duas décadas, a taxa média de crescimento dessas regiões é de 75 mil km².
E, segundo especialistas ouvidos pelo g1, as consequências dessa expansão são bastantes preocupantes, pois mostram que, se nada for feito, não apenas a disponibilidade hídrica, mas também as atividades agrícolas e pecuárias do nosso país estarão ameaçadas.
Em resumo, as principais conclusões dos estudos são as seguintes:
– A aridez está aumentando em todo o país, exceto no Sul, devido ao aumento da evaporação associada ao aquecimento global. Ou seja, o clima está secando em muitos lugares do Brasil;
– No caso específico do semiárido, essas regiões estão se expandindo de forma acentuada, com uma taxa média superior a 75 mil km²;
– Já no centro-norte da Bahia, pela 1ª vez, foi identificada uma região árida, ou seja, com uma escassez forte de chuvas;
– Tudo isso indica que processos de desertificação, ou seja, a degradação de áreas semiáridas, podem se acelerar nas próximas décadas. Segundo os pesquisadores, até mesmo em outras regiões do país, como o Centro-Oeste;
– Num país como o Brasil, esse é um dado preocupante, pois pode trazer impactos significativos para a produção de energia e agropecuária nacional.
Seca x aridez
Ana Paula Cunha, pesquisadora do Cemaden e uma das autoras do estudo, explica que a seca é um fenômeno gradual que acumula seus impactos ao longo de um extenso período, persistindo por anos, mesmo após o fim de eventos do tipo.
🚨 Ou seja, a seca, que nada mais é que um termo para uma estiagem prolongada provocada pela deficiência de chuva, deixa uma marca duradoura, com impactos que perduram por muito tempo e que podem ser investigados por pesquisadores.
“Por isso, quando falamos de clima, seca e mudanças climáticas, é crucial ter em mente que precisamos de, no mínimo, 30 anos de dados para uma análise abrangente”, explica Ana Paula Cunha, pesquisadora do Cemaden.
E foi justamente esse período de análise utilizado na pesquisa do Cemaden e do Inpe.
Para evitar interpretações equivocadas, por exemplo, de um período com uma seca significativa como 2015, que estava com forte influência do El Niño, os pesquisadores analisaram blocos entre os anos de 1960 e 1990, 1970 e 2000, 1980 e 2010 e, finalmente, 1990 e 2020.
Dessa forma, uma compreensão mais precisa das tendências climáticas nestes últimos anos era possível de ser traçada.
Com dados da Agência Nacional de Águas (ANA) e do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) sobre precipitação, temperatura máxima e mínima, radiação solar, velocidade do vento e umidade relativa, foi possível, então, calcular o índice de aridez (IA) de todo o Brasil e desenhar o mapa do começo desta reportagem, referente às décadas de 1990 e 2020.
👉 De forma resumida, dá para dizer que esse índice é um indicador numérico do grau de secura do clima. Quanto menor o número, mais seca é a região. Ou seja, há uma falta crônica de umidade no clima, não apenas uma seca isolada.
– Assim, o índice de aridez de 0.2 indica uma região árida, com chuvas muito escassas.
– Entre 0.2 e 0.5, a região é semiárida, com chuvas um pouco mais abundantes, mas ainda insuficientes.
– Entre 0.5 e 0.65, a região é subúmida seca, com condições de chuva relativamente melhores.
Com todas essas informações em mãos, os pesquisadores compararam as áreas que são consideradas semiáridas, e viram que elas aumentaram em média 75 mil km2 por década (olhando numa média móvel de 30 anos).
Fora isso, quando observaram os períodos de 1970 a 2000 e de 1980 a 2010, perceberam um aumento nas áreas semiáridas às custas das áreas subúmidas secas. No entanto, no período de 1990 a 2020, todas as três classificações de áreas mostraram aumento, indicando uma aceleração nessa tendência.
🚨 Somando todas as áreas juntas (áridas, semiáridas e subúmidas secas), o aumento médio foi de 65 mil km2 por década.
Impactos na produção de energia e agropecuária
Javier Tomasella, pesquisador do Inpe e coordenador do estudo, explica um ponto importante: sua pesquisa não apenas revela mudanças geográficas, mas também realça a necessidade de o Brasil desenvolver estratégias adaptativas, especialmente nas áreas urbanas e na agricultura, onde a eficiência no uso dos recursos hídricos se torna crucial.
“A adaptação a esse novo panorama climático requer a participação ativa de todos os setores econômicos e níveis governamentais. As consequências climáticas se interconectam em todo o país”, afirma Javier Tomasella, pesquisador do Inpe e coordenador do estudo.
Para se ter ideia, segundo dados da Associação Internacional de Energia Hidrelétrica (IHA, na sigla em inglês), o Brasil fica em segundo lugar no ranking dos países com a maior capacidade hidrelétrica instalada do mundo: com 109.4 gigawatts.
Aliado a isso, ainda de acordo com a IHA, o nosso país depende de reservatórios hidrelétricos para gerar mais de 60% da sua eletricidade.
“Infelizmente, a desertificação e a expansão de áreas semi-áridas ou áridas é uma realidade, não só no Brasil, mas também em outros climas, como é o caso do Mediterrâneo. A má distribuição da chuva, com grandes períodos prolongados de seca e a ocorrência de eventos extremos de chuva forte, isolados, parece estar alterando os biomas de forma mais rápida do que prevíamos”, avalia Marcio Cataldi, professor do Departamento de Engenharia Agrícola e Ambiental da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Impactos
Cataldi é autor de outro estudo que chamou atenção para a necessidade de um plano nacional de gestão hídrica, publicado na prestigiada revista Natura e intitulado “O Brasil está numa crise hídrica e precisa de um plano contra seca”.
No artigo, ele explica que o declínio na disponibilidade de água para irrigação e o aumento da frequência e intensidade de eventos climáticos extremos vem prejudicando safras e a criação de animais em boa parte do Brasil, levando a uma redução na produção e, consequentemente, a um aumento nos preços dos produtos agropecuários.
Como mostrou o g1 Bahia, em Chorrochó, uma das cidades com registro de clima árido, as safras de milho, feijão e melancia de agricultores apresentaram baixo rendimento no último ano, justamente por causa do clima mais quente e menos chuvoso, que também trouxe impactos na alimentação do gado de pecuaristas locais.
“Provavelmente, isso está ocorrendo porque, além das alterações no regime de chuva e, consequentemente nas quantidades de calor e umidade destas regiões, a alteração do tipo e uso do solo, com as práticas de queimadas e de desmatamento, está acelerando processos que, naturalmente, duravam centenas ou milhares de anos, para poucas décadas” diz Marcio Cataldi.
Necessidade de ações integradas
No estudo, Cataldi alerta ainda para a urgência de ações integradas, incluindo medidas de monitoramento climático, investimentos em tecnologias sustentáveis, como energia solar e eólica, e a implementação do plano nacional para lidar com a crise hídrica e seus impactos socioeconômicos.
“Investimentos em ciência e tecnologia são essenciais para a busca e implementação de medidas que reduzam impactos socioeconômicos e criem resiliência climática. Sem investimentos em áreas estratégicas para o desenvolvimento do país, o Brasil continuará sofrendo com os efeitos dos cada vez mais frequentes eventos extremos, como secas, enchentes e ondas de calor”, alerta Augusto Getirana, pesquisador da Nasa e doutor em hidrologia pela UFRJ, que também colaborou com o estudo.
Ao g1, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima disse que planeja lançar um Plano de Ação Brasileiro de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca (PAB Brasil) até setembro de 2024.
“O processo demandará que os diferentes setores repensem projetos de desenvolvimento para o semiárido, com medidas e investimentos para recuperação das áreas, recuperação e proteção da Caatinga e gestão das águas, como uso e revitalização das bacias hidrográficas”, disse a pasta em nota.
O ministério afirmou “também buscará reforçar o diálogo com os governos da Bahia e de Pernambuco para a construção conjunta de um plano de ação para o enfrentamento da aridez”.
Ainda de acordo com o MMA, o texto prevê ações para os próximos 20 anos. Isso incluirá metas específicas de curto, médio e longo prazos, além de arranjos institucionais envolvendo diversos setores.
A pasta informou ainda que o plano terá um sistema de monitoramento para acompanhar o progresso e fornecer resultados à sociedade, sem dar mais detalhes.
“Só conseguiremos nos preparar para o que está por vir, do ponto de vista climático, se diminuirmos as nossas emissões e se formos capazes de criar planos de resiliência que contemplem toda a sociedade, sem exceções, já que todos, também sem exceções, poderão sofrer as graves consequências do que pode estar por vir”, afirma Cataldi.