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“Não fossem as 25 mulheres deputadas naquele espaço com mais de 500 deputados e senadores, estaríamos chagados por enorme atraso em matéria de família”. “Houve constituintes evangélicas/os que conseguiram, com clareza, separar a sua fé da atuação como representantes estatais da sociedade”. As afirmações são do advogado Enézio de Deus Silva Júnior, doutor e mestre em Família na Sociedade Contemporânea, autor do livro “Falas de que Família(s)? Análise dos Discursos da Constituinte de 1987/88 sobre Direitos e Relações Familiares”, que será lançado nessa quinta-feira (5), na Livraria Cultura do Salvador Shopping, capital baiana. Vale conferir a entrevista que ele concedeu ao Notícias de Santaluz.

Advogado retirolandense lança livro nesta quinta-feira (5), no Salvador Shopping | Foto: Divulgação

Doutor e mestre em Família na Sociedade Contemporânea, advogado retirolandense Enézio de Deus Silva Júnior lança livro nesta quinta-feira (5), no Salvador Shopping.

A Constituição de 1988, tendo por foco analítico o seu longo processo de elaboração, é um bom exemplo de que a sociedade brasileira mudou para melhor quanto à família?

Infelizmente, não. Tudo que se conquistou de progressista ou, simplesmente, justo na Constituinte de 1987/88 quanto ao tema família (o divórcio ilimitado, a pequena quebra da centralidade do casamento como único constituidor familiar, a igualdade formal entre mulheres e homens na chefia da sociedade conjugal, a licença paternidade, dentre outras inovações para as condições de produção da época) somente foi inserido no texto da Constituição após muita luta dos movimentos sociais, especialmente o de mulheres, meio a muitos embates discursivos e articulações de convencimento que se sobrepusessem ao jogo conservador dos atravessamentos ideológicos ali preponderantes. Houve, sem dúvida, pontuais avanços, mas, no geral, a sociedade brasileira, da mesma forma como representada androcentricamente naquele espaço institucional, prossegue, em sua maioria, mais conservadora do que progressista em matéria de direitos, relações familiares e tudo que circunda o tema família(s).

E o que você entende por família?

Pessoas unidas por se amarem e desejarem prosseguir juntas. O que diferencia, portanto, uma família de todas as formas possíveis de agrupamento humano é o afeto especial que une seus membros na clara perspectiva de uma vida em comum, por meio da qual são partilhadas não somente responsabilidades, mas, especialmente, sentimentos, sonhos, projetos e desejos em prol da felicidade dos que a integram. Família é, em outras palavras, espaço de subjetividades culturalmente modelado, por meio do qual pessoas afetivamente unidas (ainda que não coabitem exclusivamente no mesmo espaço físico) procuram se desenvolver da melhor forma, tecendo, juntas, suas realizações. É o lócus sagrado do afeto por excelência, sem o qual resta difícil (senão, impossível) pensar no melhor desenvolvimento humano. Por isso, uma das mais graves injustiças é a negação do status de família a pessoas que, por se amarem, resolveram caminhar juntas. A realidade biológica, por si só, sempre será insuficiente para compreendermos a profundidade dos laços familiares e da própria dimensão do que seja uma família. Mais do que simples “achados da natureza” sustentados pela consanguinidade, famílias são teias afetivamente edificadas que, pelo primado da liberdade individual, sustentam-se pelo querer bem mútuo. Se não for por esse livre querer (por fazer bem, por valer a pena a construção e a convivência afetiva conjuntas) uma família, como se diz, pode ser mais “de fachada” do que de verdade. Não precisamos ser do mesmo sangue para sermos uma família. Hoje, a meu ver, importante é a constatação de que, ao contrário das alegações de ruína ou crise total “da família”, as famílias, nos seus plurais, prosseguem fortemente reinventadas, como bem pontua Elisabeth Roudinesco, ou seja, em constantes mudanças e prontas para se manterem ao longo dos tempos, porque essenciais aos seres humanos. As lentes de certo conservadorismo é que fingem não enxergar essa permanente dinâmica.

Como você chega a tal constatação? A Constituinte, então, enquanto espaço institucional, não conseguiu refletir os anseios democráticos conforme tão ansiado naquele momento?

Refletiu naquilo que foi conveniente para a maioria conservadora ali discutindo e decidindo em nome de toda a sociedade. No âmbito dos direitos e relações familiares, houve diversas preterições e exclusões “costuradas” pelo patriarcado heteronormativo em destaque representado. Assim se constituíram os dizeres e silêncios sobre o tema família na Constituinte de 1987/88, a mais longa da nossa história. Trata-se de um processo constituinte complexo (processo mesmo, ao invés de uma mera “reunião” ou “assembleia”), de sentido democrático para os anseios libertários daquele momento singular, mas carregado de fundamentalismos e preconceitos que não são problematizados, por exemplo, nos “manuais” de Direito Constitucional quando abordam a Constituinte que durou quase dois anos para dar à sociedade brasileira sua tão sonhada “Constituição Cidadã”. Há um sem número de autores romantizando e repetindo elogios generalizantes sobre um processo que foi, sobretudo na seara familiar, tenso e dialogicamente conflitante. Não fossem as 25 mulheres deputadas naquele espaço com mais de 500 deputados e senadores, estaríamos chagados por enorme atraso em matéria de família. A atuação do chamado “lobby do batom”, em permanente conexão com o movimento social de mulheres, foi catalisadora dos avanços, como bem minudencia Dra. Salete Maria em sua tese/livro “A Carta que elas escreveram: a participação das mulheres no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988”. Tal movimento, bem representado em uma das sessões por Comba Marques falando em nome do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, foi significativa para os avanços familiares que tivemos no texto da Constituição Federal promulgada em 5 de outubro de 1988, assim como a atuação suprapartidária do assim alcunhado “lobby” formado pelas deputadas constituintes, qualificador dos debates.

Foi árduo, então, fazer a Constituinte avançar?

Sim. Muito tenso e trabalhoso fazê-la avançar no possível e discutir temas que fundamentalistas desejavam “abortar” rapidamente: o divórcio ilimitado, o alargamento do conceito de família, a igualdade real, isto é, material das mulheres com relação aos homens nas relações familiares, etc. Embora o atravessamento ideológico mais operante contrário às pautas progressistas tenha sido o religioso de matriz cristã, houve constituintes evangélicas/os que conseguiram, com clareza, separar a sua fé da atuação como representantes estatais da sociedade, a exemplo de Benedita da Silva (PT-RJ) e Lysâneas Maciel (PDT-RJ). Isso, ali, foi e, até hoje, continua raro de se ver nos parlamentos em todos os âmbitos; algo muito importante para a democracia num Estado laico. Surpreendi-me positivamente. Ambos, por exemplo, votaram a favor de que a expressão “orientação sexual” fosse inserida, no texto constitucional, como mais um dos elementos expressos proibitivos de discriminação dos cidadãos e cidadãs. Mas, na reta final da Constituinte, por conta de mais uma das tantas manobras conservadoras, tal expressão foi excluída da redação final da Lei Maior. Não há como repetir que a Constituinte de 1987/88 foi somente progressista em matéria de família quando, por exemplo, um parlamentar, após convencido pelos pares, chorou ao ter que retirar uma proposta de sua autoria defendendo a volta da indissolubilidade do casamento sob a justificativa de que Deus criou o homem para se unir à mulher em caráter eterno (contrário, portanto, ao divórcio, possível no Brasil desde 1977). As investidas ou “costuras” no sentido de tornar o texto constitucional o mais conservador possível quanto aos direitos e relações familiares foram constantes, ininterruptas naquele processo discursivo complexo e continuamente atravessado pelas ideologias religiosa, patriarcal, heteronormativa, casamentária e consanguínea.

É por isso que você dedica essa sua nova obra àqueles e àquelas para os quais a “Constituição Cidadã” não veio?

Exatamente. Após analisar cientificamente os dizeres e silêncios das/os constituintes sobre direitos e relações familiares por quatro anos, não faço coro com a “ala constitucionalista” que perpetua exaustivos elogios à Constituinte de 1987/88 e à forma como a família foi delineada no texto constitucional em vigor. Embora não negue os avanços (união estável e família monoparental como novos entes familiares, licença paternidade, igualdade plena formal entre filhos e entre homens e mulheres na sociedade conjugal, dentre outros), continuarei dedicando essa pesquisa a todas e todos para as/os quais a Constituição não veio, ainda excluídas/os da aplaudida promessa: 

“a Nação quer mudar, a Nação deve mudar, a Nação vai mudar”.

De onde brotou essa investigação e qual teoria o embasou nessa empreitada?

Brotou do meu desejo de analisar cientificamente tais discursos (dizeres e silêncios) para saber como e por que a família foi delineada, até chegar à sua redação final, no texto da Constituição Federal aprovada em 1988. Isso é de uma relevância social e de um ineditismo tal, que se afiguraram fundamentais para mim quando, entre 2012 e 2016, estive na condição de aluno de um programa de doutorado em família. Não identifiquei, desde antes da seleção para ingresso no doutorado, pesquisa científica ou obra com tal recorte e metodologia analisando a base discursiva sobre família emanada da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/88. Foi o que empreendi sob a orientação do Dr. Edilton Meireles, desembargador e professor de mestrado/doutorado da UFBA e da UCSAL. O campo teórico da Análise do Discurso francesa (AD) viabilizou, pelo seu potencial e abertura interdisciplinares, a concretude da investigação, com aportes principais nas contribuições do seu fundador, o filósofo Michel Pêcheux, e da sua maior expoente no Brasil, a Profa. Dra. Eni Orlandi.

Como você teve acesso aos discursos da Constituinte?

Através de pedido formalizado ao Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados, que me deu acesso a todos os discursos, debates, atas e demais documentos componentes da enorme base de dados da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/88.

Imagino o seu trabalho para organizar, fazer os recortes…

Um trabalho enorme, confesso. No início, pela dimensão do arquivo e, mesmo após definido o “corpus” analítico, a tarefa era grande. Foram quatro anos de muita imersão, de bastante concentração nos limites entre teoria/empiria, entre referenciais teóricos e metodológicos, entre descrição e análise daqueles discursos que, muito mais do que palavras que não são somente daqueles/as parlamentares, constituem ditos e silêncios que significam demais pela história, pela língua, pelo inconsciente e pelas ideologias. Como bem ressalta Profa. Eni Orlandi, os sujeitos dizem, imaginam que sabem o que estão dizendo, mas, em verdade, não acessam nem controlam os modos pelos quais os sentidos se constituem neles, por eles. Foi, portanto, desafiadora a tarefa que abracei de procurar perceber e descrever esses sentidos pelos atravessamentos ideológicos preponderantes a respeito do tema família(s) na mais longa Constituinte brasileira.

Quais vertentes ou forças mais progressistas atuaram a favor da ampliação dos direitos familiares na Constituinte de 1987/88? Teria como citar alguns nomes de parlamentares que o sr considera progressistas na matéria ou que elevaram o nível dos debates?

A principal força progressista, elogiável nesse particular, sem menor dúvida, foi a articulação política e cidadã das mulheres dentro e fora daquele espaço institucional, seja como movimento social, seja como força encarnada naquelas somente 25 deputadas em meio a mais de 500 homens deputados e senadores, embora nem todas fossem necessariamente progressistas a ponto de abraçarem a integralidade das pautas consideradas avançadas, libertadoras; mas a grande maioria, sim. Essa baixa representação feminina nos espaços de poder é muito bem abordada pela Dra. Sônia Wright em sua tese/obra “Estratégias de inclusão das mulheres na política institucional: a opinião parlamentar estadual do Nordeste”. Nenhuma daquelas 25 deputadas teve posição de destaque regimental na Constituinte, à exceção da deputada Cristina Tavares (PMDB-PE), que ficou com a relatoria da Subcomissão da Ciência e Tecnologia e da Comunicação. É lógico que houve muitos deputados e senadores progressistas, fundamentais naquela ambiência para os avanços conquistados textualmente quanto aos direitos das famílias, relações familiares e demais socialmente relevantes, a exemplo de Nelson Carneiro, José Genoíno, Florestan Fernandes, José Paulo Bisol, Domingos Leonelli e outros. Igualmente, lembro-me de nomes de deputadas constituintes bastante qualificadoras dos debates (além de Cristina Tavares): Benedita da Silva, Lídice da Mata, Anna Maria Rattes, Irma Passoni e outras.

A Constituição Federal brasileira em vigor completará 30 anos em outubro próximo. Ela vem possibilitando mudanças importantes para a sociedade na área de família?

Da mesma forma como na Constituinte analisada: à custa de muita luta e articulação social. Sem isso, não se avança em nosso país.

Você vê quais contribuições à sociedade nesse seu novo livro?

Primeiro, a de que consolidar direitos diferentes aos que me tocam não me afetam nem me diminuem: somam para uma sociedade democraticamente mais fortalecida e harmoniosa. Daqui, surge outra fundamental contribuição: a de que, em tempos de preconceitos ainda recrudescidos, as esperanças e forças de luta precisam prosseguir renovadas por um país, de fato, solidário para com todas as famílias, justo e respeitoso. Nossas diversidades nos enriquecem. Quanto mais respeito à dignidade de todas as pessoas com suas bases familiares respeitadas, mais avançaremos, pois isso gera amor e paz na sociedade. É muito simples. Só assim, quem sabe um dia, a aplaudida promessa da Constituinte (de que “a Nação vai mudar”) torne-se realidade para todas e todos as/os brasileiras/os sem qualquer distinção. Aproveito para agradecer ao site Notícias de Santa Luz e para reforçar a todas e todos o convite para o lançamento do meu livro.

Sobre o autor – Enézio de Deus Silva Júnior, natural de Retirolândia-BA (1981), é advogado, servidor público concursado da Secretaria da Administração do Estado da Bahia, professor da Especialização em Educação em Gênero e Direitos Humanos da UFBA/UAB, bacharel em Direito pela UESC, especialista em Direito Público pela UNIFACS, mestre e doutor em Família na Sociedade Contemporânea pela UCSAL.

"Falas de que Família(s)? Análise dos Discursos da Constituinte de 1987/88 sobre Direitos e Relações Familiares", que será lançado nessa

Livro “Falas de que Família(s)? Análise dos Discursos da Constituinte de 1987/88 sobre Direitos e Relações Familiares” será lançado nessa quinta-feira (5), no Salvador Shopping.

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