Os tristes rumos do serviço público no estado da Bahia – por Enézio de Deus
Após o mais recente protesto coletivo contra o governo baiano por parte de categorias de servidores públicos reunidos em grupos no Centro Administrativo da Bahia (dia 7 de abril, por convocação da FETRAB em conjunto com diversas outras entidades representativas), eclodem reflexões que vão além da lamentável negativa do Executivo em nos conceder o reajuste anual previsto em lei.
Há situações mais gravosas, denunciadoras da precarização das carreiras de Estado, assim denominadas as decorrentes de concurso público ou por lei outrora assim equiparadas.
A forma de o governo atual lidar com carreiras indica serem as últimas (ou parcas) preocupações das “mentes técnicas com a bola da vez” nas gestões petistas, bem afiadas quando o discurso é economizar. Só se fala nisto – “cortar gastos” -, sem que percebamos, efetivamente, o corte nos paradoxais excessos que ainda existem em recursos humanos.
Pontuais carreiras de servidores (quadros efetivos) e direitos legalmente conquistados há décadas vêm se extinguindo na Administração Pública, sem que sejam feitos novos concursos para a necessária continuidade de suas missões no estado.
A FUNDAC é um nítido exemplo do desmantelamento progressivo de quadros permanentes, justo onde, pela relevância e especificidade dos seus objetivos regimentais (“promover a responsabilização e contribuir para a emancipação cidadã dos adolescentes aos quais se atribui autoria de ato infracional no estado da Bahia, atuando na garantia dos direitos humanos”), jamais se poderia ficar à mercê dos ventos de livres nomeações, exonerações, contratações terceirizadas e outras mudanças comuns nas trocas de governo, geradoras somente de instabilidade institucional.
Infância e adolescência como prioridade absoluta no que tange às chamadas medidas socioeducativas na Bahia? Só no sonho constitucional da década de 80.
As mudanças em nomenclaturas de cargos permanentes de tal Fundação, por exemplo, distorcendo a natureza especial que tinham os então Orientadores de Crianças e Adolescentes, por exemplo, discreparam, a nosso ver, não somente do espírito do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), mas do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE, Lei nº 12.594/2012) e do chamado Código Brasileiro de Ocupação, estabelecido pelo Ministério do Trabalho no que diz respeito à especificidade da atividade exercida.
Em suma, a socioeducação, pela qual tercerizados vêm recebendo mais do que alguns efetivos da FUNDAC hoje, de algo tão relevante, passou a atividade como qualquer outra. Porque o aviltamento atingiu quem ali estava com sua rica bagagem de experiências/história no Estado e meritocracia/competências inquestionáveis.
As recentes alterações (frutos da PEC 148/2015 e do PL 21.631/2015) em direitos nossos, dos servidores públicos baianos concursados – incidentes, por exemplo, na estabilidade após exercício, com o cargo efetivo, de cargos comissionados/funções/mandatos e na licença prêmio – , aprovadas por todos os deputados e deputadas estaduais da base governista, somente ratificaram os tristes rumos do serviço público no nosso estado, potencializando indagação de há quase dez anos: a que ou a quem serve a fragilização das carreiras permanentes assumidas após tantos anos de preparo e aprovação em concurso?
Governo que resiste e parece esperar ser interpelado judicialmente (através de mandados de segurança, por exemplo) para efetivar progressões ou promoções cujos requisitos legais já foram atendidos – os de mudança de classe de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) da SAEB exemplificam atualmente -, respeita os seus servidores públicos de carreira? Salvo melhor juízo, a nosso ver, não.
Felizmente, neste particular, o Poder Judiciário tem feito justiça em pontuais situações a que temos assistido, compelindo o Poder Executivo a cumprir o que ele próprio estabeleceu em lei.
Para governos que priorizam, claramente, projetos de perpetuação no poder, se mostra mais relevante – embora a nosso ver imoral, mais caro aos cofres públicos e ilegal em certos aspectos – alimentar “exércitos militantes” na tríade REDAs/comissionados/terceirizados do que valorizar as carreiras (permanentes) de Estado, assim reconhecidas as que existem por previsão legal, detentoras das verdadeiras “memórias do serviço público”.
Basta uma observação criteriosa de secretarias estaduais de missão estratégica – como a da Administração (SAEB), ante o seu caráter de amplitude ou sistêmico -, para detectarmos a lamentável quantidade de servidores sem vínculo efetivo/concursado, “apadrinhados/as ou amadrinhados/as”, revezando-se entre cargos comissionados e REDAs ao longo de anos, ao passo que servidores concursados, com destacados níveis de qualificação de suas próprias carreiras, de experiência e de caro auto-investimento educacional, ficam à margem de uma valorização efetiva face à covardia estatal de empoderá-los/as, oportunizando-lhes experiências mais desafiadoras.
Isto porque o perfil do servidor concursado é menos manipulável e mais crítico, com grau de autonomia diferenciado, decorrente, no geral, da sua própria estabilidade garantida constitucionalmente (direito também passível de desmantelamento futuro, caso as categorias fiquem “boquiabertas”, somente confiando nos seus diletos representantes coletivos, sem exigirem, criticamente, dia a dia, violação a violação, também individualmente, o que lhes é de direito).
De superintendências ligadas a cidadãos e servidores, como a SAC, a instâncias administrativas de conselhos relacionados a recursos humanos e diretorias que formalmente objetivam (no papel) valorizar e fazer carreiras se desenvolverem, atestamos, assim como em canais/setores de denúncia/correição, alguns símbolos/cargos (coordenações, assessorias, etc) comissionados ocupados por pessoas alheias ao quadro permanente, dentre as quais, infelizmente, parcela de gente incompetente, que mal sabe escrever um despacho mais longo ou parecer fundamentado.
Atentem que, aqui, exemplificamos com esferas/setores/instâncias que processam/decidem sobre questões que tocam, diretamente, nas nossas vidas funcionais de servidores concursados/estáveis.
Nos Gabinetes dos secretários, ainda compreendemos o sentido da “estrita confiança” esperada dos/as que gostam de estar acercados/as dos detentores de símbolos hierarquicamente mais altos, mas o excesso da tríade referida (REDAs/comissionados/terceirizados) em RH é demais: chega a dar náuseas.
Quando conveniente (para autopromoção?), o governo apregoa aumento nas arrecadações e gastos responsáveis nesta época de inegável recessão e crise em nosso país.
Por outro lado, quando o desafio é fazer funcionar os procedimentos de progressão e/ou promoção das carreiras, vive a editar instruções e outros instrumentos legais que, ao invés de facilitarem o crescimento/estímulo funcional, geram o contrário: decepções e desestímulos nos seus servidores permanentes.
Ao identificarmos tantos nomes de colegas nossos, servidores/as com qualificações técnicas, acadêmicas e experiências diversificadas sendo escamoteados e trabalhando subordinados a não-concursados (não raro, caídos dos paraquedas de movimentos ou indicados pelo critério partidário no “loteamento do Estado pós-eleições” ou por influências familiares, incomparavelmente menos responsáveis/conscientes quanto ao que é, de fato, o serviço público), isto nos faz lembrar de outras situações relacionadas a instrumentos normativos que parecem ter surgido para impressionar desatentos ou ingênuos em algum momento, mas que podem não estar, ao que tudo indica, sendo objeto de continuada fiscalização/atualização quanto à sua fiel observância.
Uma delas foi a promulgação da Lei Estadual 10.623, de 06/06/2007, que, no seu leque de proibições de nomeações, designações e contratações de cônjuges, companheiros ou parentes até o terceiro grau, somente limitou, quanto ao Poder Executivo (art. 1º, I) parentescos relacionados ao governador e vice, aos secretários de estado e aos dirigentes máximos de empresas públicas, sociedades de economia mista, fundações e autarquias. Na época, 2007/2008, a SAEB até providenciou espécies de formulários a serem preenchidos e houve, de fato, algumas poucas exonerações, atendendo-se ao previsto na mencionada Lei.
De lá para cá, questionamos: o Poder Executivo vem procedendo com idêntica ou semelhante medida em RH para adequação da prática administrativa à “Lei de Combate ao Nepotismo” (já que tamanha é a rotatividade nos cargos de livre nomeação e exoneração)?
Se o objetivo fosse mesmo moralizar a coisa pública, tais medidas deveriam ser efetivadas de forma contínua e prévia, porque, basta lermos dia a dia o Diário Oficial, para assistirmos às contínuas nomeações e exonerações.
Outra norma para, ao que parece, impressionar bastante e que não sabemos a que veio, foi a chamada Emenda Constitucional da FICHA LIMPA, a EC nº 17/2013. Tal Emenda à Constituição do Estado da Bahia, aprovada e publicada no Diário do Poder Legislativo nº 21.178, em 09/07/2013, traz DIVERSOS requisitos (exigências várias, por meio da apresentação prévia de certidões e declarações públicas a exemplo de que, antes de ser nomeado, o cidadão/ã comprove não ter, contra si, representação julgada procedente pela Justiça Eleitoral quanto a abuso de poder econômico ou político nos últimos 8 anos; não tenha contra si decretação da suspensão de direitos políticos por ato de improbidade administrativa, etc) para assumir um cargo comissionado ou função gratificada, carreira permanente e até mesmo ser contratado via REDA em nosso Estado.
Quem lê o teor da referida EC questiona-se se, no âmbito do Poder Executivo por exemplo, a Ficha Limpa estaria sendo observada em sua integralidade por todos os órgãos e entidades baianos/as, devido, em especial, à amplitude/número de comprovações/certidões/declarações exigidas.
As coordenações/setores de Recursos Humanos e instâncias político-institucionalmente “articuladoras” estão fazendo cumprir/observar tal Emenda (hoje integrante do texto da nossa Constituição estadual) em sua integralidade, exigindo tudo quanto nela previsto dos aprovados (em concursos ou seleções REDA) e dos “indicados políticos” para cargos de livre nomeação/exoneração?
Privados de antigos direitos (os que passarem em concursos doravante) e restritos em seu gozo (os já integrados ao quadro permanente), como os colegas servidores estão assistindo ao transcurso de um processo que, no futuro, poderá gerar mais restrições ou perdas, inclusive financeiras?
Como servidores da FUNDAC, da SESAB e da SEC, por exemplo, prosseguem os debates sobre os recentes abruptos cortes na periculosidade, na insalubridade e no chamado difícil acesso? Mesmo restabelecidos integral ou parcialmente, tal não isenta a livre análise crítica de como o governo vem lidando com as categorias. Ou não vivemos, mesmo desgastada pelas imoralidades a que temos assistido, numa democracia?
Como os sindicatos, associações e demais entidades estão esclarecendo, atuando e envolvendo, de forma livre (não aparelhada, o que é muito raro) nestas discussões, os servidores que representam?
É possível que venham outras restrições ou mudanças em direitos, aproximando as nossas garantias (tão árdua e democrático-constitucionalmente conquistadas) das relações regidas pela CLT?
Se sim, repito: a que ou a quem serve tal processo, que nos deixa não somente decepcionados, mas apreensivos quanto aos dignos projetos de vida que escolhemos para nós? Dignos sim, pois somente não honra o bom serviço ao público, através do que nos paga a sociedade, quem não serviria bem em lugar algum. Quem tem perfil ético sobretudo, trabalhar por um hoje e um amanhã melhores, justos e solidários, conforme o que determina a legislação, é natural extensão/dever introjetado desde a escolha da carreira.
Limitados aos discursos de sindicatos e de outras entidades representativas (algumas aparentemente “rendidas” aos ditames do governo e fingindo apoio incondicional aos pleitos dos seus representados), a maioria dos servidores tem ido pouco ou nada além dos limites dos seus próprios “umbigos funcionais”, esquecendo-se de que uma perda ou precarização em um direito de uma carreira ou grupo ocupacional atinge todos os demais grupos, porque vai, sorrateiramente, legitimando outros cortes lamentáveis.
Categorias com poder de fazerem estados e municípios pararem – por repercussões midiáticas e gravidade prática maior – conseguem, às vezes, “vantagens tácitas” (que somente incidem em gratificações específicas, elencadas em seus contracheques) quando governos se amedrontam ante um real indicativo/início de greve, por exemplo. Mas esta forma de conquista de direitos, ainda que momentaneamente boa para tais agrupamentos, por se dar “a portas fechadas” e sem a ampla publicidade, não fortalece a luta coletiva dos servidores públicos, embora não condenemos qualquer estratégia de valorização.
Oxalá o governo do estado (sob pena de a máquina pública parar, caso anuncie atraso ou parcelamento dos nossos árduos salários), economize em pontos ainda intocados, cortando os famosos JETONS (“sentadas” caras em alguns conselhos da Administração Direta e nos vários de empresas públicas. Por que não o faz, moralizando esta forma de ganho extra considerável para alguns poucos escolhidos?). Bem como limitando mais/fiscalizando o uso de carros oficiais para alguns símbolos/funções; priorizando, para nomeações em cargos comissionados/funções de confiança, seus servidores concursados (porque se sabe que, comprovadamente, os não-concursados custam bem mais caro aos cofres públicos). Idem quanto a possíveis novas reformas administrativas, que fundiriam secretarias criadas mais para respostar movimentos e imitar o governo federal, cujas missões poderiam ser mui exemplarmente honradas em outros órgãos de sólida história no Estado – SEPROMI e SPM exemplificam com relação à SJDHDS.
Tomara, também, que a total transparência quanto aos gastos da folha de pagamento (como já possibilita, via consulta pública, em sítio próprio, a União) seja efetivada pelo Poder Executivo estadual, para que a sociedade baiana, que nos paga, veja, sem qualquer restrição, exatamente quanto investe no serviço público em RH, isto é, nas remunerações de cada um de nós e, por outro lado, dos/as escolhidos/as só pelo critério do “QI” (os/as sem vínculo permanente, com sua variedade de símbolos e adicionais a exemplo da CET, “condições especiais de trabalho”; os que, com certeza, infelizmente, contribuem menos para a estabilidade do serviço público no sentido da sua memória e da imprescindível garantia da continuidade).
O que é para ser excepcional, como o REDA, tornou-se regra em alguns pontuais entes e setores (administração indireta e direta)? Eis outra problemática em RH a merecer reflexões.
Se bem atuar como servidor público (ou seja, como servidor da e para a sociedade que nos paga) for, para alguns, atender a “chamados” para participação em protestos/manifestações, eu e um sem número de colegas continuaremos fora de tais esquemas deteriorantes do serviço público, da legalidade e da real liberdade inerente à democracia.
Igualmente, se pontuais colegas concursados que hoje estão investidos em cargos comissionados fingem o país e a Bahia às mil maravilhas para o serviço público, meus pêsames: vocês foram picados pela “mosca vermelha”.
Preferirei prosseguir picado pela mosca REAJA de Cristovam Buarque ou pela MOSCA AZUL de Frei Betto: nomes, em caixa alta, de excelentes obras que, ao contrário de elogios baratos a partidos ou a movimentos amordaçados/aparelhados, estimulam-nos a, de forma suprapartidária, autônoma e independente de quaisquer trocas escusas, mantermos viva a indignação e a nos engajarmos, destemidamente, em prol de mudanças. É isto que sempre farei e espero seja o genuíno sentido dos ativismos libertos de condicionamentos interesseiros, imediatistas ou bipolarizantes.
Nunca me furtei ao serviço da possível máxima qualidade por conta de como vejo as relações de poder a partir das passageiras “arrumações” partidárias/agrupamentos ideológicos, cuja complexidade ultrapassa e dista bastante dos meus projetos. Bem servir é lei e lei se cumpre. O resto? Passa. Felizmente, passa.
Enézio de Deus, servidor concursado da Secretaria da Administração do Estado da Bahia (EPPGG), Advogado.