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Por g1

Foto: Acervo ISPN/Raisa Pina

Diferentes famílias que criam animais em áreas coletivas, vivendo da agricultura de subsistência e da coleta de frutos e plantas medicinais do Cerrado e da Caatinga.

Essas são as chamadas comunidades de fundo e fecho de pasto, tradicionais da região Nordeste, principalmente do sertão baiano. Enquanto no Cerrado é mais comum a criação de bovinos, na Caatinga se faz mais presente a de caprinos e ovinos.

O termo “fundo” caracteriza os povos que criam animais em áreas fixas. Já no “fecho”, por falta de espaço em seus territórios, as famílias levam o rebanho para pastos distantes. Em muitos casos, chegam a se deslocar até 100 quilômetros de distância.

“A área de terra que a gente tem é pequena, não dá conta para criar o gado para a manutenção da família. Por isso, usamos o fecho de pasto”, conta Élia Sodré do Nascimento, da comunidade de fecho Pedra Branca, que fica município baiano de Correntina, a 655 km de Salvador, já na divisa com Goiás.

O coletivo é formado por 40 famílias, que utilizam um fecho em comum chamado de “Boi A Rib Abaixo”, que fica a 42 km de suas casas, no próprio município de Correntina. “Nossa viagem chega a durar um dia”, diz Élia, explicando que os vaqueiros fazem este trajeto a cavalo.

Tanto no fecho, como no fundo, os locais de pastagem dos animais são coletivos, ou seja, não pertencem a uma única pessoa ou família.

Comunidades centenárias

Os povos de fundo e fecho de pasto surgiram por volta de 1750 com a ocupação de sesmarias, terras que eram concedidas pela coroa portuguesa a alguns beneficiários, explica Samuel Brito, educador social da Comissão Pastoral da Terra (CPT) da Bahia.

“Tem lugar no centro-oeste baiano de comunidades com 300 anos de história”, diz ele.

“Os sesmeiros que, obviamente, eram latifundiários, não davam conta de ocupar toda a sesmaria. Então, parte dessas terras foi sendo ocupada por outras pessoas que não necessariamente eram ligadas à família dos sesmeiros”.

A maioria das comunidades de fundo e fecho foi formada por indígenas e negros que foram escravizados. “Mas existiu um processo de miscigenação com descendentes de portugueses e outros povos europeus”, destaca o educador.

Luta por terra

Foto: Arquivo pessoal

Assim como os indígenas, quilombolas, geraizeiros e outros povos tradicionais, as comunidades de fecho e fundo lutam pela preservação e manutenção de suas terras, que são foco de conflitos por causa do avanço de grileiros, processo que começou a ocorrer com mais força a partir da década de 1980, conta Brito.

“Essas terras vêm sendo expropriadas pelo agronegócio, empresas de mineração e, mais recentemente, por eólicas”, diz ele.

Élia conta que o fecho de sua comunidade, o “Boi A Rib Abaixo”, vem sendo tomado aos poucos. “Um grileiro entrou e derrubou nossas cercas e nossos ranchos. E, quando vamos para lá, em poucos minutos, chega a polícia com arma”, relata.

“Não é de hoje que estamos buscando a titulação desse território junto ao estado baiano. Como é que agora chega um fazendeiro chega e toma conta e o estado garante?”, questiona.
“Nós estamos nessas terras há anos, somos os donos tradicionais. Tem, inclusive, um senhor de 105 anos que vive nessa área, onde seu bisavô já era dono”, diz.

Élia conta que, mesmo diante da situação de conflito, a sua comunidade continua se deslocando até o “Boi A Rib Abaixo”. “É isso ou ir para cidade para passar fome”.

Foto: Arquivo pessoal

Atividades no fecho

A família de Élia sempre pertenceu ao campo, ao fecho e à “luta para manter o Cerrado de pé”.

Na infância, sua diversão preferida era brincar de cavalo de pau para pastorear o gado com outras crianças. “Meu pai só que não deixava, porque falava que isso não era coisa de menina, mas a gente brincava escondido”, rememora, que hoje é casada e tem três filhos.

Dentre as diferentes atividades do fecho, Élia trabalha com a horticultura e no cuidado com as vacas. “Quando os homens levam o gado para os gerais [região de Cerrado, onde está a pastagem], as vacas paridas ficam para poder tirar leite, né? Então tem que cuidar, dar água…e as mulheres fazem isso”, conta.

“Mas, quando é para ir para o embate, vai mulher, vai todo mundo. Não tem jeito”, diz.

Élia explica que os animais são levados para os pastos comunitários em torno do mês de abril. E, um pouco antes da época das chuvas, por volta de setembro, os criadores retornam com o gado para perto de suas casas.
Esse revezamento é necessário para que as pastagens se renovem. As chuvas, por exemplo, ajudam o capim a brotar novamente. E, assim que a vegetação é recuperada, o rebanho é levado novamente para o fecho.

“Os vaqueiros costumam se revezar [para supervisionar os animais]. Em uma semana, vai três, na outra, um outro grupo, e assim por diante”, explica o educador social da CPT Samuel Brito.

Foto: Sertão Agroecológico/Univasf/Estudo FPP

Vida no fecho

Quando se deslocam para áreas coletivas, os integrantes da comunidade de Élia costumam fazer ranchos de palha. “Mas já tem casa com bloco para poder ter um aconchego e segurança…à noite tem que acender fogo para evitar as onças”, conta.

Nessa viagem, os criadores levam agasalhos, cobertas e comidas que as mulheres preparam, como feijão, arroz, farofa e carne. “A gente deixa tudo pronto para eles poderem cozinhar lá”.

Os animais cumprem diferentes funções nessas comunidades, como a de ser um auxílio em momentos de necessidade. “Pobre não faz poupança, né? Então, o futuro que a gente tem é um gado. Quando alguém adoece, a gente vende o gado para poder cuidar do tratamento”, relata.

Além disso, quando uma família abate um animal, é comum compartilhá-lo com algum vizinho para fins de alimentação.

Foto: Arquivo pessoal

‘Manter o Cerrado em pé’

Hoje, Élia trabalha a maior parte do tempo em sua horta, que fornece alimentos tanto para a subsistência de sua família, como para a venda em feiras da agricultura familiar e ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE, merenda escolar).

“Eu que produzo a minha alimentação. Aqui, eu planto feijão, arroz, milho, mandioca, tudo orgânico, nada de agrotóxico”, conta.

É da própria terra que essas comunidades retiram até mesmo o “remédio” para combater pragas na plantação, como o timbó, que Élia usa para matar insetos.

E tudo é feito respeitando a sazonalidade de cada vegetal. “Nós não desmatamos nada. Coletamos os frutos e as plantas na época certa”, diz.

Dentre as frutas tradicionais, estão, por exemplo, o pequi, caju, puçá, cagaita e cascudo. Já entre as plantas medicinais, Élia cita o barbatimão e o carapiá, que ajuda, segundo ela, a combater o calor durante a fase da menopausa.

“O Cerrado é rico em plantas medicinais, mas, para elas continuarem vivas, o Cerrado precisa se manter em pé, ter água. E é por isso que nós o preservamos”, diz.

 

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